A Maria Emília tinha mais de setenta anos quando a conheci.
Vivia sozinha numa cave de um prédio antigo, (cave é um nome tão feio para se morar), com janelas lá muito perto do tecto que davam para a rua, e um pequeno quintal nas traseiras. Fosse hoje e havia de morar no piso -1, que sempre é uma coisa mais airosa.
Tinha um banquinho que colocava encostadinho à parede, e para onde subia para conseguir espreitar quem passava, quem saía da estação de comboios mesmo em frente, quem entrava na pastelaria do lado.
Vivia sozinha. Tinha vivido com os pais até morrerem, primeiro a mãe, depois o pai, velhinhos e doentes. Tratou deles até a deixarem completamente só.
A Maria Emília era solteira. Ou melhor, a Maria Emília era solteirona, porque foi sempre assim que ouvi falar dela. Uma velha solteirona.
Dava explicações. Mais dada ao Português, à História e à Geografia, custava-lhe adaptar-se aos novos programas de Matemática, de Química e de Biologia. Na casa dela, estava montado um verdadeiro centro de estudo, daqueles à antiga, onde não se espreitava pela montra para ver as crianças com ar enfastiado, cabeça apoiada na mão esquerda, lápis na mão direita a roçar os lábios.
E lia, muito. Tinha livros e livros sublinhados e cheios de notas. E escrevia. Sobretudo poesia.
E foi por causa da profissão da Maria Emília que a conheci, eu tinha pouco mais de vinte anos, estudava na faculdade, e fui "recrutada" para dar as disciplinas de que ela já não dava conta.
Privei com ela durante alguns anos, e apesar de reservada, quase estranha até, lá foi ganhando confiança e devagarinho e avulso, foi contando o seu passado.
A Maria Emília tinha tido um grande amor. O Zé (engraçado como passaram tantos anos, e nunca me esqueci do Zé da Maria Emília). O Zé cortejou, escreveu cartas, pediu namoro, depois a mão. Estava tudo certo para casarem, quando a Maria Emília descobriu que o seu Zé lhe tinha mentido. Não sei que mentira foi, apesar da minha curiosidade ser grande, e de diversas e imaginativas abordagens, ela nunca me contou. Dizia só que não tinha sido uma coisa nem grave, nem importante, mas não poderia ter casado com ele, porque perdera a confiança. No entanto amava-o. Tão profundamente, que decidira que se aquele era o homem da vida dela, não casando com ele, não casaria com mais ninguém. Razão pela qual dedicou a sua vida aos pais, à poesia, e às crianças. Do Zé, guardava um molho de cartas dentro de uma caixa, lidas e relidas ao longo de mais de cinquenta anos.
O Zé foi à vida dele. Menos fiel ao amor da sua vida, casou, teve filhos, e mais tarde netos. A Maria Emília acompanhou a vida do Zé que já não era seu, à distância. Soube-lhe todos os momentos. A Maria Emília, de cabeça toda branca, saia cinzenta abaixo do joelho, óculos na ponta do nariz, cara enrugada, confessava, que de vez em quando, discava o número de casa do Zé, só para ouvir a voz dele. E desligava.
Não sei porque me lembrei disto hoje.
A última vez que soube da Maria Emília estava internada num lar, e não reconhecia ninguém nem dizia coisa com coisa.
Talvez, mas só talvez, se lembrasse do seu Zé.
Xaxia... fez-me chorar. E não é brincadeira, nem sarcasmo, nem coisa que o valha... é mesmo tristeza.
ResponderEliminarA história é um bocadinho triste, também acho. Ainda assim, aquela convicção que um amor é para a vida e não sendo aquele não vale a pena arranjar outro, é bem mais verdadeira que o "rei morto, rei posto" dos nossos dias.
Eliminarbom dia. conheci uma "Maria Emília" igualzinha, há muito tempo. só com a diferença que esta, com quase 90 anos, ainda está sã da cabeça, e nunca ninguém lhe conheceu um "Zé" que lhe povoasse as memórias. e nunca precisou de ajuda. do português à matemática , nada lhe escapava. talvez por ser pessoa do antigamente e os programas serem imutáveis, como as estátuas.
ResponderEliminarPoucas pessoas conheciam a história do Zé. Eu é que sempre fui uma coscuvilheirona de primeira, e tantas perguntas lhe fiz sobre o passado que ela lá se foi descosendo. Mas não deve ser a mesma...Esta Maria Emília, já não dava as disciplinas de ciências a partir do 9º ano, e foi precisamente por essa razão que a conheci, eu dava umas coisas, ela dava as outras...Era muito engraçado.
EliminarÉ tão triste. Triste por ter ficado "presa" às memórias de um amor. Para variar o Zé não teve a mesma dificuldade e passou para outra... Admiro a convicção da Maria Emília por se ter recusado a casar o que na altura, não deve ter sido fácil. Devia/deve ser uma mulher de forte convicções.
ResponderEliminarÂngela
Estou aqui sem saber se digo que é uma história bonita ou triste... possivelmente as duas. Acabei agora mesmo de ler o conto "O grito" de Maria Judite de Carvalho e parece-me que Maria Emília poderia ser perfeitamente a personagem principal de um dos contos...
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