Quando entrava a porta para almoçar, sustinhamos a respiração e esperávamos. Se começasse a falar, estava a ter um bom dia, se entrasse mudo e nos desse o nosso beijo sem que nos dirigisse qualquer palavra, era certo que estava com a telha, o melhor a fazer era comermos calados e sossegados.
A minha avó fazia-nos sinais. Abria-nos os olhos. Juntando os silêncios do meu avô, aos olhares da minha avó, já sabíamos com o que contar.
O meu avô nunca nos bateu. Nem uma só vez. Nem um só açoite. Tal como não batera aos filhos, muito menos à mulher. Não havia razões para temer alguma coisa, no entanto era temor que sentíamos.
Hoje sei que aquela espécie de medo que pairava nos dias de mau humor do meu avô (e se eram muitos), nos era incutido pela minha avó.
A minha avó vivia para servir o marido, para garantir que nada o perturbava ou arreliava, que a comida estava na mesa à hora certa, nem muito quente, nem fria. Que o café aterrava na frente dele, mal engolisse o último pedaço de fruta. Que quando chegasse à porta, já ela lá estaria com o casaco nos braços, para o ajudar e para o ver partir de novo para o trabalho.
Todos nós achávamos que a minha avó era infeliz. Que só podia ser infeliz.
Quando o meu avô adoeceu e se tornou dependente de cuidados que exigiam algum esforço físico e noites mal dormidas, os filhos (incluindo a minha mãe), acharam que estava na hora de salvar a mãe daquele jugo de uma vida. De lhe dar a liberdade que (eles julgavam) ela merecia. Caramba, ainda era nova, ainda podia aproveitar.
O meu avô foi internado num lar.
E a minha avó, ao invés de passar as tardes no café a bebericar chá, ou de ir dar uns passeios com umas amigas, em vez de aproveitar aquela liberdade que lhe caía do céu, resolveu inscrever-se em regime externo no mesmo lar onde estava o marido, e continuou a passar os dias com ele, a dar-lhe o almoço, a ajudar em todos os cuidados.
Até aí, não tínhamos entendido, nenhum de nós tinha, que o que fazia a minha avó sentir-se realizada, era aquela articulação harmoniosa e quase perfeita de todas as tarefas que tinha a seu cargo. Não chegávamos atrasados à escola, nas mochilas ia o lanche para o intervalo da manhã, a roupa engomada estava nos armários, a casa estava limpa, impecável, o almoço aterrava na frente do meu avô às13h40m, impreterivelmente.
A realização da minha avó, não estava em usar calças (literalmente), estava em que nada falhasse.
Mas nós- eu, a minha mãe- estávamos demasiado cheias do "havia de ser comigo", do "Deus me livre de algum dia ser criada de um homem", demasiado convencidas que sabíamos o que era melhor para qualquer mulher, que "aquilo já não se usava", do "deixar de ser parva".
O meu avô teve um AVC pouco tempo depois e morreu.
A minha avó nunca perdoou os filhos.
Eu aprendi uma lição, das grandes.
Que ninguém é dono da verdade. E que não há receitas universais de felicidade. Ou de infelicidade.
Very, very well written, Madam
ResponderEliminarObrigada...
EliminarGosto tanto de ti, gaja...
ResponderEliminarReciproco.
Eliminar<3
ResponderEliminarEfectivamente há quem se realize a fazer as tarefas que para outros são menores ou redutoras.
É o que dá termos a mania.
EliminarVerdade, verdadinha!
ResponderEliminarSeja qual for, a nossa 'receita' para a felicidade encontra sempre o seu lote de julgamentos por parte dos outros.
Quem não adora meter a foice em seara alheia?
EliminarIndeed... :)
ResponderEliminarPor aqui? Lês o meu blogue, caraças?
EliminarMuito, muito bom.
ResponderEliminarObrigada, Lulu.
EliminarO que é bom para mim pode não ser para outro e vice-versa. Já foi dito, mas repito, excelente texto!
ResponderEliminarObrigada Lucia.
EliminarMuito bem Xaxia! Clap clap clap! A pessoa aplaude de pé.
ResponderEliminarA pessoa agradece com uma vénia.
EliminarTão bom e tão bonito Xaxia!
ResponderEliminarTão bem escrito e tão verdadeiro!
Obrigada Dorothy...
EliminarNão é fácil adquirirmos lucidez suficiente para compreender algumas formas de felicidade.
ResponderEliminarPorque temos a mania que sabemos o que é certo para os outros.
EliminarÉ a história da vida dos meus pais, contada como deve ser e num texto fantástico.
ResponderEliminarMuito obrigada!
Mãe...? :DDD
EliminarMuito bonito este post.
ResponderEliminarParabéns pela história e pela escrita, e obrigado pela lição de vida.
Ora, ora, quem sou eu para dar lições?
Eliminar(baba, litros de baba)